
Educação I A Música e a aprendizagem
Ana tinha sérios problemas de socialização com outras crianças. A sua coordenação motora estava longe de ser fantástica e esse facto condicionava a sua integração em jogos e brincadeiras com os seus colegas. As crianças conseguem por vezes atingir com crueldade os que aparentam diferenças conotadas como pouco abonatórias e a forma desastrada que fazia a Ana perder sempre a bola quando a atiravam, ou cair com facilidade a andar de bicicleta era o pretexto perfeito para a afastarem.
Ana crescia e apesar dos esforços da família havia uma tristeza descendo suavemente sobre si. Um dia a avó Carolina levou-a a um concerto ao ar livre. Era promovido pela Câmara da cidade onde viviam.
Ouvia-se o concerto para piano de Ravel quando o 2º andamento começou, suave e sublime, e a Ana, na altura com 9 anos, não conseguiu conter uma avalanche de emoções. A avó percebeu que a neta chorava e sorriu. Quando o concerto acabou, a Ana tomou a mão da avó e anunciou: quero aprender a tocar piano.
O Nuno é um rapaz de 11 anos. Na escola os professores apercebem-se da sua dificuldade de concentração, os pais preocupam-se com a permanente irrequietude, o aparente desinteresse pela escola e os resultados escolares revelam um quadro preocupante. Há no entanto uma coisa que o Nuno gosta de fazer: ouvir música e acompanhá-la ritmicamente batucando em todas as superfícies que encontra, criando atmosferas de timbres improváveis. A sua habilidade causa sucesso entre os amigos e nas festa de aniversário é ele quem anima as tardes. O Nuno tem um tio que toca numa orquestra e um dia desafiou-o a aprender percussão.
A Ana e o Nuno não são ficção. Representam todas as crianças que tiveram a felicidade de conhecer a música pelo lado de dentro e que se tornaram mais felizes com esta relação. Mais felizes, mais capazes e preparados para enfrentarem uma multiplicidade de desafios.
Ana melhorou a sua destreza ao desenvolver a habilidade ao piano. Nuno aprendeu a difícil arte da concentração. Mas além do facto importante de cada um ter conseguido superar as suas fragilidades específicas, importa registar que ambos optimizaram competências cognitivas com evidentes resultados escolares. Aprender a tocar um instrumento implica um trabalho complexo que vai além da perícia técnica. Estamos a falar da descodificação de uma linguagem cifrada, uma leitura de signos que vai sendo gradualmente mais fluida e acelerada acompanhando as exigência rítmicas. Mas essa leitura é o primeiro patamar para a interpretação de uma partitura porque saber “ler” é muito mais do que identificar notas distribuídas pelas 5 linhas e 4 espaços de uma pauta. Interpretar é compreender o registo certo das dinâmicas que nem sempre se encontram totalmente definidas na obra e é também conferir uma assinatura individual, tal como um actor quando dá vida a um texto. Tocar um instrumento é ainda conhecê-lo em todos os seus componentes, é saber construir um diálogo íntimo com ele e perceber de que forma se pode transformar num parceiro cúmplice.
Quando as Anas e os Nunos do nosso mundo iniciam a aprendizagem musical nem sempre o fazem por iniciativa própria e bem pelo contrário, muitos fazem-no contrafeitos. E há o erro comum nas famílias ao permitir a desistência. Caso houvesse total consciência dos benefícios que a educação musical, incluindo necessariamente a aprendizagem de um instrumento, traz para a vida de um indivíduo, jamais os pais permitiriam a desistência.
Aprender a dominar a precipitação, a reflectir sobre erros cometidos, a realizar vagarosamente as tarefas para que elas possam ser analisadas, gerir a frustração, adquirir resiliência são, a par das vantagens intelectuais, conquistas que tornarão cada jovem aprendiz uma pessoa mais feliz, mais equilibrada e preparada para a vida e desafios.
No mês em que se as férias se sentam à mesa dos dias, talvez valesse a pena pensar em tudo isto.
Ana Paula Timóteo
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