
Regresso de Carmen Dolores I Um livro imperdível
A grande actriz acaba de lançar o livro “Vozes Dentro de Mim, memórias de uma longa carreira”. Carmen Dolores estreou-se em 1938 como declamadora, impondo-se pouco depois no cinema e no teatro.
“A ideia deste livro surgiu-me repentinamente num recital do pianista Grigory Sokolov, em Lisboa”, revela-nos. “O concerto fez-me reviver “os tempos da infância, em casa dos pais, onde se ouvia grafonola, uma companheira de muitos serões. Não é saudade o que sinto, é voltar a viver esses momentos, agora com uma quase felicidade que não soube aproveitar na altura própria”, sublinha.
Aos 93 anos, a actriz mantêm intacta a lucidez e a serenidade que a caracterizaram desde sempre. O talento e a luminosidade foram, com efeito, uma constante da sua postura que a transformaram numa das maiores actrizes do nosso tempo.
“Estreei-me numa das companhias de grande prestígio na época, os Comediantes de Lisboa, concorrente do Teatro Nacional. Era um grupo constituído, praticamente, só por vedetas, como a Maria Lalande, o António Silva, a Lucília Simões, o Assis Pacheco, o Nascimento Fernandes, o João Villaret, o Ribeirinho. Havia uns jovens como eu, o Igrejas Caeiro era um deles. Achávamos que era uma honra estar ali”, revela-nos.
“O teatro, nessa altura, era mais difícil que actualmente, havia mais intrigas, mais hipocrisia. As pessoas mostravam-se mais vedetas. Hoje, já poucos actores se consideram assim. São mais francos entre si”, destaca.
Filha de um conhecido jornalista, José Sarmento, homem culto e brilhante, e de Maria do Pilar, de origem espanhola e judaica, Carmen Dolores era uma jovem franca e discreta: “Vinha de um meio familiar muito restrito, havia coisas que me chocavam, tinha muitas ilusões a respeito das pessoas”.
Comecei com 14 anos
Por influência paterna, a actriz tomou contacto desde criança com a literatura, a música, o teatro – o seu irmão, António Sarmento foi também actor. “Ele era extraordinariamente bom, muito afectivo e ligado à família. Foi quem me ensinou a dizer os primeiros versos, tinha eu seis anos. Estreei-me com ele na rádio. Aí tive uma carreira mais completa do que no cinema. Comecei com 14 anos e nunca deixei de trabalhar aos microfones. Aliás gosto muito de fazê-lo. O meu primeiro amor foi a rádio”.
Voz inconfundível
A sua voz tornou-se inconfundível declamando poetas como Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Augusto Gil. “Foram tantos os poetas que interpretei!”, exclama. “Apreciava, sobretudo, António Nobre, Garrett, Augusto Gil, Florbela Espanca, Manuel Alegre, Sophia de Mello Breyner. Actualmente, acho a poesia mais hermética. Muitos dos seus autores são difíceis de dizer, por outro lado, as pessoas perderam o hábito de ouvir poesia. Há muitos poetas de que gosto, mas que não servem para um meio como o nosso”.
O teatro radiofónico foi outra modalidade interpretativa que Carmem Dolores desenvolveu. O País suspendia-se a ouvir os programas dramáticos, frequentemente preenchidos com peças de grandes dramaturgos. A Emissora Nacional, onde Carmen Dolores trabalhava, atingiu um nível invulgar nesse género de ficção.
Várias gerações de portugueses, sobretudo as radicadas no interior, foram seduzidas por ela para o teatro, para a literatura, para a poesia. Estava-se, então, numa época de grandes declamadores, como João Villaret, Manuela Porto, Manuel Lereno, Maria Germana Tânger. Rapidamente Carmen Dolores se impôs pela sua qualidade de comunicadora. O intimismo do microfone (como o da poesia) adaptava-se excepcionalmente bem à sua personalidade.
Em 1939, o pai morre deixando a mulher e os três filhos muitos abalados. “Isso marcou-me para a vida”. Carmen inicia, pouco depois, a sua carreira. “Aconteceu por acaso. Pensava ser missionária ou irmã de caridade e, depois, professora”.
António Lopes Ribeiro convida-a, então, para interpretar a figura de Teresa de Albuquerque no filme ``Amor de Perdição``. Hoje afirma que não se imagina a “fazer outra coisa que não seja representar”. A mãe colocou, no início, algumas reticências, mas Carmen Dolores e os irmãos venceram-nas.
Quando termina a II Guerra Mundial, em 1945, estreia-se no teatro, na peça “Electra, a `Mensageira dos Deuses``, integrada nos Comediantes de Lisboa.
Temperamento emotivo
O seu talento, o seu temperamento emotivo foram amplamente reconhecidos pela crítica. Passa a desdobrar-se pela rádio, pelo palco, pelo cinema. O marido, Vítor Veres, um engenheiro que conheceu durante a rodagem de um filme, tornou-se um dos seus maiores admiradores e apoiantes até morrer.
“Casei-me com um homem que adorava o teatro, que admirava a profissão de representar. Isso ajudou-me muito, porque é muito difícil estar casado com uma actriz. Ele foi sempre extraordinariamente compreensivo com os meus problemas profissionais. Até no casamento tive sorte”.
Preocupações sociais
As preocupações sociais dos actores prendem-lhe a atenção, levando-a a lançar a Apoiarte, instituição destinada a acolher artistas, que foi inaugurada em 1998. “É engraçada a maneira como surgiu o projecto”, recorda. “Vivia em Paris, o meu marido trabalhou lá, eu dava recitais de poesia. Lembrei-me, então, de que poderia ajudar a criar uma casa do artista. Falei nisso num programa do Júlio Isidro. O Armando Cortez contactou-me de imediato, dizendo que estava a trabalhar num projecto idêntico. Fundámos, então, a Apoiarte. O Octávio Clérigo, a Manuela Maria, o Rául Solnado, o Orlando Alves, e eu própria, metemo-nos ao trabalho. A Câmara de Lisboa cedeu-nos um terreno, o governo deu-nos apoios, os colegas entusiasmaram-se”.
Perder o jeito
Com profundo carinho, Carmen Dolores evoca Amélia Rey Colaço, que conheceu no Teatro Nacional: “Considero-a uma grande mulher do teatro e da cultura. Admiro-a muito. Foi a pessoa mais humilde que encontrei no palco, apesar do seu ar aristocrático. Um actor deve ser humilde”.
Em 1998, a actriz concretizou um velho sonho: a interpretação de "Jardim Zoológico de Cristal", de Tenessee Williams. “Foi com muita emoção que trabalhei na sala-estúdio do Teatro Nacional que tem o seu nome e do marido, um grande ensaiador. Dediquei-lhes esse espectáculo. Foi na Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro que aprendi muito do que sei. Não frequentei o Conservatório porque o António Lopes Ribeiro dizia-me: “não vás para lá pois perdes o jeito que tens”. O meu conservatório foi o Teatro Nacional. Recordo com saudade os seus grandes artistas, a Palmira Bastos, a Aura Abranches, o Raul de Carvalho, o Erico Braga, sempre trabalhei com actores de enorme talento. Passei lá muitas noites importantes, noites que marcaram o teatro português”.
António Lopes Ribeiro é outra pessoa a “quem devo imenso”, acrescenta. “Foi ele que me descobriu para o cinema e me levou para o palco quando se tornou empresário nos Comediantes de Lisboa. Ribeirinho, o seu irmão, seria a primeira pessoa a dirigir-me em cena. Tive muita, muita sorte. O engraçado é que nessa altura não queria ir para o teatro, assim como antes não queria fazer cinema. Achava que não sabia nada, que seria um disparate. Tive a felicidade de entrar no cinema na sua época áurea. O António Vilar foi meu galã nos primeiros filmes. Era uma pessoa difícil, mas um excelente intérprete. Não era nada inferior às vedetas americanas da época, como o Errol Flyn ou o Gary Cooper”.
O palco angustia-me
Houve uma altura em que “pensou ser engraçado fazer revista”, pormenoriza-nos. “Os outros acharam, porém, que eu tinha um ar muito dramático para isso e não me deram saída. Infelizmente, não há muito teatro de comédia, e eu adoro comédias. O que predomina entre nós é o teatro psicológico, sério. A Laura Alves não teve continuadores. Apesar das crises, acho que o teatro há-de de existir sempre. Neste momento há, até, mais público, os adolescentes estão a descobrir e a gostar do teatro”.
O palco angustiou sempre Carmen Dolores, mas exercia obviamente uma enorme fascino sobre ela.
Em 2005 representou, pela última vez, na peça "Copenhaga". Um grande êxito.
Nos últimos anos a actriz emergiu na sua vida privada. Vive em Lisboa nas Avenidas Novas na companhia do filho Rui Veres. O marido morreu em 2011. Em 2012 gravou o CD de poesia “Poemas da minha Vida”, um velho sonho, dedicando-se a escrever as suas memórias – precioso contributo para a história do espectáculo entre nós. Completa 80 anos de carreira no próximo ano.
A figura, a voz, o rosto de Carmen Dolores, tornaram-se pela sua elegância, comunicabilidade, inteligência, uma referência cultura inesquecível.
António Brás
Poemas de Carmen Dolores
Os meus poetas
Os meus poetas nunca
me deixaram só
As suas palavras acompanharam-me
sempre
Nos meus longos
Passeios solitários
Enquanto a minha alma
se esgueira
Ao encontro das suas
almas inquietas
Natureza
Obrigada, meu Deus,
Por me teres feito
contemplativa
Por me teres dado este dom
De me poder integrar na natureza
Esta percepção para os
Sons que me rodeiam
Quando esses sons são
o canto dos pássaros
O marulhar das águas
O sopro do vento – tudo
o que a natureza me traz
Algumas datas
1924 – Carmen Dolores nasce a 22 de Abril em Lisboa
1938 – Revela-se como declamadora na Rádio Sonora, de onde transita para a Emissora Nacional
1943 – Inicia a carreira cinematográfica interpretando a figura de Teresa de Albuquerque no filme “Amor de Perdição”. No ano seguinte entra na película Um Homem às Direitas. Recebe o prémio de melhor actriz
1945 – Estreia-se no teatro na peça “Electra, a Mensageira dos Deuses”
1947 – Casa com o engenheiro Vítor Veres. No ano seguinte nasce o filho Rui
1950 – Integra o elenco da Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro no Teatro Nacional, onde permanece até 1958
1959 – Recebe, pela sua criação em “Seis Personagens em Busca de Amor” de Pirandello, o prémio de melhor actriz do ano
1961 – Funda, com outros colegas, o Teatro Moderno de Lisboa
1964 – A peça “Dança da Morte” proporciona-lhe novo prémio da crítica
1974 – Conhece um grande êxito em “As Espingardas de Mãe Carrar”, de Brecht
1976 – Fixa-se durante sete anos em Paris
1983 – Reaparece em Amor à Antiga
1985 – Interpreta “Virgínia Woolf”, obtendo um prémio da crítica
1987 – A parece na série televisiva “Cobardias” de Miguel Rovisco; e no filme “A Mulher do Próximo” de Fonseca e Costa
1990 – Homenageada pelos seus 50 Anos de Carreira. Recebe a medalha de mérito cultural
1992 – Protagoniza a peça “ Espectros” de Ibsen
1998 – Concretiza o sonho: a interpretação do “Jardim Zoológico de Cristal” de Tenessee Williams
2004 – Interpreta a personagem de Luísa Todi num CD, o texto de Margarida Lisboa reinventa o diário da celebre cantora de ópera
2005 – Despede-se dos palcos em “Copenhaga” de Michael Frayn
2011 – Morte do marido, Vítor Veres
2012 – Lança o CD “Poetas da Minha Vida”
2017 – Publica “Vozes Dentro de Mim”, memorias, edição da Sextante Editora