
Educação I Andamos a criar analfabetos funcionais? ?
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Estar numa escola a 14 mil kms de distância da realidade escolar de Portugal não é significativo apenas pelos oceanos que nos separam e pelas horas de voo cumpridas em cada trajecto. É significativo do ponto de vista de aprendizagem e enriquecimento emocional e profissional que são alcançados quando nos confrontamos com visões de vida diferentes daquelas a que estamos habituados. Perspectivas que influenciam, inevitavelmente, as relações e vínculos sociais. Sabemos que é uma frase batida, mas não vale a pena tentar encontrar caminhos sinuosos para dizer o óbvio e o óbvio é que cada viagem nos torna menos ignorantes, mais preparados e, talvez exactamente por isso, menos tolerantes com a patetice e a ausência de bom senso.
Por vezes as experiências fora de portas, principalmente quando viajamos para sociedades com menos acesso a níveis de conforto a que nos habituámos, revelam-nos a verdadeira dimensão de alguns tiques de analfabetismo funcional nas nossas crianças e equívocos educacionais identificados em países mais desenvolvidos. Portugal pode não copiar a qualidade de vida de alguns desses países mas os tiques, esses, tem-nos de sobra.
É, sem dúvida, uma tarefa árdua a de encontrar o equilíbrio entre a proteção que devemos garantir aos nossos filhos e a forma como devemos promover a sua autonomia e resistência ao esforço. Porém, um pouco de bom senso temperado com instinto e envolvido com reflexão despojada de preconceitos, talvez sejam os ingredientes necessários para um caminho mais lúcido.
Existem comportamentos, defendidos como sendo de salvaguarda e de prevenção de riscos que objectivamente prejudicam o equilibrado e saudável desenvolvimento das crianças colocando-as mais em risco do que se possa pensar. Um risco que, por não se revelar imediato, não é facilmente entendido como tal.
Falemos de situações concretas:
Quem observa a chegada dos alunos a uma escola em Portugal pode constatar a chegada dos carros de muitos pais que só não entram pelo portão da escola porque não têm autorização para tal (lá chegará o tempo...). depois é ver os papás e as mamãs a saírem do carro, caso este tenha ficado a uns metros de distância da entrada da escola, e acompanhar o seu educando, tenha ele 7 ou 15 anos, carregando a mochila deste. É claro que existem constrangimentos que obrigam a trazer os filhos de carro, mas por cada um desses existe uma panóplia de casos que resultam tão somente da vontade de evitar que o menino ou menina se incomode em transportes públicos ou tão simplesmente que calcorreie 1km ou 2km, coisa que se cumpre facilmente em 10’/20’ de caminhada saudável. Esse trajecto coloca-o em risco de ser assaltado? É evidente que existem zonas mais perigosas que outras e tudo deve ser equacionado, mas o risco existe até à porta de casa.
Quanto a carregar com os materiais do filho o argumento é o de poupar o filho a um peso excessivo. Será este um argumento válido? Vejamos: quantas vezes o peso da mochila deriva não exactamente dos manuais que se transportam mas dos dossiês desmesuradamente grandes e de capas lindas de morrer mas pesadíssimas, dos estojos (mais do que um, em muitos casos) com material desnecessário lá dentro ou de tablets que levam para a escola porque há sempre um jogo bem mais interessante do que ler um livro na biblioteca ou conversar com os amigos? Então talvez valha a pena analisar o que está a contribuir efectivamente para o peso excessivo da mochila. Mas mesmo nos casos em que de facto o dia está mais preenchido com aulas e os manuais representam um peso grande, existem tróleis que facilitam e em última instância serão de facto umas dezenas de metros assim tão dramáticas que impeçam de transportar uma mochila nas costas com as duas alças nos ombros? E quando as crianças escorregam pelo sofá de pescoço em jeito de avestruz de cabeça na areia, porque estão a olhar para os telemóveis, os problemas que a postura pode causar no crescimento músculo/esquelético, já não são motivo de preocupação?
O exagero com que se tem poupado os filhos ao esforço físico tem tido ao longo dos anos os seus nefastos resultados. Hoje em dia é comum ver nas escolas alunos de canadianas e de pé suspenso lesionado. É raro não se ver um aluno de pé enfaixado em ligaduras ou então agarrado a um saco de gelo que coloca sobre um joelho ou encosta à cabeça. Hoje as crianças e adolescentes caem muito e quando caem aleijam-se com uma gravidade que não se via há uns anos atrás e que não pode ser considerada normal.
O analfabetismo motor é por isso uma preocupação séria nas escolas e tem sido alvo de reflexão especialmente entre os professores de Educação Física confrontados não apenas com os constrangimentos, cada vez mais evidentes, ao nível da coordenação motora dos seus alunos, como com as debilidades físicas que potenciam as lesões constantes.
E é assim que quando estamos a 14 mil km do nosso país num outro território onde as crianças correm de chinelos nos pés sobre caminhos impensáveis, semeados de pedregulhos, terra argilosa e cascalho, andam 2 horas para chegar à escola, passando dentro de ribeiras de sapatilhas ao ombro para não as molharem, subindo e descendo montes, nos lembramos dos meninos portugueses e sentimos o quanto impreparados eles estão para viver fora de 4 paredes ou das 4 rodas que os transportam.
Proteger em demasia, não é proteger, é prejudicar porque impede um desenvolvimento equilibrado que permite a aquisição de capacidades básicas essenciais que garantam uma vida em maior segurança. E os pais, ao carregar com o peso dos materiais escolares enviam duas mensagens erradas: a da escola/carrasca que prejudica e a dos pais/funcionários dos filhos.
É evidente que não defendemos que um mundo de insuficiências seja o melhor ambiente para preparar crianças. Defendemos sim, que entre um extremo e outro deve ser encontrado um ponto de equilibro. Porque apesar de no mundo dos pés nus e cheio de carências a motricidade estar bem consolidada e não esbarrarmos com alunos com pés torcidos, não é defensável caminhos tortuosos e tanta luta para se chegar à escola. Não podemos é continuar a fingir que está tudo bem neste nosso pequeno universo em que os jovens quase desconhecem o chão que cada vez menos pisam.
Ana Paula Timóteo