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Futebol e Educação

Portugal é um país de múltiplas qualidades, mas onde se vivem por vezes, diríamos mesmo com bastante frequência, momentos bizarros que se expandem num tempo extenso. Nas últimas semanas vive-se um desses fenómenos que nos tem oferecido um espectáculo que não sendo inédito será sempre lamentável. A propósito do campeonato mundial de futebol, uma atmosfera de embriaguez colectiva tem vindo a ser avolumada. Em telejornais, publicidade ou nos mais variados programas televisivos ou radiofónicos, colunas de opinião, crónicas ou notícias, publicações nas redes sociais, conversas de café ou discussões familiares, o futebol reina como porta-estandarte de uma nação em estado de hipnose descontrolada. A loucura adensa-se de forma nauseabunda em redor de um dos jogadores e as narrativas ouvidas colocam-nos sérias dúvidas sobre a lucidez dos comentadores televisivos. Pensamentos, emoções ao rubro e até preces tudo é conduzido numa só direcção. O foco é o campeonato no Qatar e tudo o resto deixou de existir.

Estou convicta que se tivéssemos estado em hibernação nos últimos anos e ao acordar ligássemos de imediato a televisão, iríamos acreditar que todos os problemas do país estavam resolvidos e que Portugal vivia uma época áurea de plena felicidade. Uma exaltação só justificada porque havíamos, finalmente, alcançado o bem-estar de todos, o acesso universal a cuidados de saúde de qualidade, a Escola Pública tinha recuperado o respeito pelo conhecimento e pelos seus profissionais voltando a ser um verdadeiro motor de desenvolvimento intelectual dos alunos. Acreditaríamos, certamente, que, finalmente, os pilares do desenvolvimento do país haviam conquistado protagonismo nas preocupações e investimento governativo, que quem trabalha tinha passado a ser condignamente remunerado, que tinha deixado de haver pobreza e as ruas estariam vazias de indigência. Porque afinal, assistir à euforia babada dos que ocupam os mais elevados cargos políticos do país com a expectativa de ver 11 jovens de calções atrás de uma bola ao mesmo tempo que tentam enganar outros 11 jovens com calções diferentes que querem a mesma bola, só nos pode fazer acreditar que o mundo está perfeito, a vida é uma eterna Primavera e o céu é o limite.

Infelizmente sabemos bem que nada disso acontece e é no mínimo preocupante que a maioria das pessoas se deixe levar nesta estratégia de hipnose grupal. Gente em delírio presa de écrans gigantes expostos em restaurantes e bares e praças. Gente de olhos em êxtase e alma em fogo porque acreditam que nos relvados de um Qatar de princípios éticos muito criticáveis se joga o destino do país.

O que é que isto tem a ver com a Educação? Tudo! Porque a Escola deve ser um viveiro de pensamento crítico, mas este só o poderá se a lucidez não se perder, se se mantiver níveis de alerta constantes diante as mais esconsas estratégias de manobrar vontades. A Escola tem de recuperar o seu papel de construtora de conhecimento, fundamental na edificação de indivíduos conscientes.  

 

O progresso está nas antípodas do embrutecimento e a apatia diante temas e problemáticas verdadeiramente mobilizadoras, condena a sociedade a um retrocesso civilizacional. A vida não pode ser confundida com uma bola a rolar num relvado. 

O palco exacerbado, histérico, ridiculamente exuberante construído em torno de um conjunto de jovens milionários cuja única grande odisseia é saber chutar uma bola e rolar com ela num amplo relvado, devia-nos sobressaltar, mas tal não acontece. Somos de forma cada vez mais agressiva envolvidos numa enxurrada de vãs notícias que distorcem o próprio conceito do que deve ser notícia mediática. A manipulação do pensamento individual com vista a um arrebatamento colectivo é um facto grave enxotado para canto por responsáveis que preferem esquecer porque todos os olhos devem estar alfinetados num relvado. 

Talvez nunca como hoje haja urgência numa educação orientada para saber ler para além do escrito, ver para além do visível, entender para além do que é ouvido. E é muito grave que aparentemente as políticas educativas se mantenham cúmplices com uma estratégia de estupidificação social tendente a criar uma sociedade de costas vergadas e mente turva. 

 

                                                                                                                                Paula Timóteo

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