
Frasquinhos de Rapé I Um Fascínio do Oriente
![]() Porta rapé. Raríssima Figura de chinês em laca. Séc. XVIII | ![]() Frasco de rapé, em forma de cabaça, adornado com cenas de macacos nas suas tropelias. Num dos lados vê-se ao centro um grande macaco – o chefe? E ao cimo a marca do fabricante ou do artesão que produziu esta maravilhosa peça. Na face posterior, a macacada é do mais puro divertimento. Trabalho em laca. Inícios do séc. XIX. | ![]() Frasco de rapé em cristal de rocha lavrado. Tampa em coral. Inícios do séc. XIX |
---|---|---|
![]() Frasco de rapé em cristal de rocha lavrado. (“horn-bil )“Séc. XIX | ![]() Raro frasco em marfim esculpido apresentando duas figuras do vento, uma em cada face, transportando flores. Frasco assinado na base, mas nesta revista não sabemos ler caracteres chineses. Séc. XIX? | ![]() Frasco em vidro, pintado no interior, representando cenas da vida quotidiana, de tal modo minúsculas que apenas se podem ver com lentes de grande aumento. Séc. XX. |
![]() Frasco de vidro, pintado no interior, representando de cada lado, asoectos de cenas familiares encimadas por textos | ![]() Frasco de vidro pintado representando de cada lado uma figura feminina | ![]() Frasco de rapé em âmbar com a tampa em jade, representando folhas e frutos. Séc. XIX. Museu de Antropologia de História Natural – Estados Unidos da América. |
![]() Frasco de rapé em âmbar, talhado em oval. Tampa em jade.Séc.XIX. Museu de Antropologia de História Natural – U.S.A. | ![]() Frasco arredondado em quartzo acastanhado. Tampa em coral. Séc. XIX. Colecção particular | ![]() Frasco de rapé em vidro "overlay" vermelho, com faces diferentes. séc. XIX |
![]() Frasco em vidro pintado representando mulher ainda jovem e com a particularidade de ter sido feito a pedido, por um amigo, para a autora deste texto de seu nome próprio MARIONELA. É o que faz gostar destes “pequenos nada” das artes decorativas. |
Coleccionar é, incontestavelmente, um prazer especial para quem já algum dia foi arrebatado por esse pequeno vício que nos enche a alma e absorve durante horas sem fim, levando-nos até, por vezes, a viver alegrias e situações só comparáveis às da nossa infância.
Pode afirmar-se que o prazer de colecionar se perde na origem dos tempos e que deverá ser tão velho como o sentido da curiosidade. Diz-se que a tendência para colecionar começou certamente a despertar no homem à medida que a cultura se lhe foi desenvolvendo. Rezam as Crónicas que, Alexandre, o Grande, enviou aos seus mestres Aristóteles colecções como exemplares de história natural. Também os Romanos colecionavam antiguidades gregas, nomeadamente esculturas e vasos, então consideradas como verdadeiros tesouros. Por exemplo, o imperador Adriano, que foi um valoroso soldado, estadista, arquitecto e poeta, encheu de obras de arte gregas a sua famosa “Villa de Tivoli”.
Em termos gerais, coleccionar é reunir objectos da mesma natureza sendo, todos diferentes entre si.
Uma colecção para ter valia, e dar a quem a possui, as alegrias normais, não carece necessariamente de ser construída por objectos raros ou de custos muito elevados. Um simples conjunto de caixas de fósforos pode, por vezes, facultar ao seu possuidor muito maiores distracções e momentos de felicidade do que uma dispendiosa colecção de algumas gemas preciosas, que obrigam a seguros e cofres-fortes ou a posse de quadros de consagrados Mestres nas elegantes paredes de um salão.
Na verdade, existem no nosso conturbado mundo uns prodigiosos frasquinhos-miniaturas, caprichosamente vazados esculpidos e pintados por hábeis e pacientes mãos dos escultores-artífices chineses, como os exemplares que vos apresentamos, os quais fazem parte de uma colecção particular a que tivemos acesso.
Cabendo normalmente na palma da nossa mão, quase todos eles constituem verdadeiras pequenas obras-de-arte. Na verdade, uma parte do seu encanto deriva, em primeiro lugar, da variedade dos materiais em que são feitos, desde os mais caros e preciosos como o jade, o rubi, a esmeralda, o cristal de rocha, o ouro, até aos mais modestos e vulgares, como cascas de nozes e caroços de frutos, utilizando-se ainda no seu fabrico a porcelana, o vidro, o osso, o marfim, o coral, a madre-pérola, o onix, o âmbar, a laca, a ágata, a tartaruga, o bambu, a prata, o cobre, etc., etc., etc.
A sua manufactura data principalmente dos séculos XVIII e XIX. Porém, no Ocidente, além de certas reuniões esotéricas realizadas na atmosfera de clubes internacionais da especialidade (international China Snuff-Bottle Society. Baltimore, USA. Ou Snuff-Bottle, Kent G. Britam), em boa verdade foi só há pouco tempo que a maioria dos colecionadores começaram a prestar uma atenção muito especial aos frasquinhos de rapé. Mais concretamente foi a partir daquele dia do ano de 1979 em que, num leilão em Nova York, foi vendido um exemplar pela inesperada quantia de 28 mil dólares ( o equivalente, hoje, a muitos euros.
O espectacular acontecimento no mundo leiloeiro das belas-artes veio assim chamar a atenção dos grandes capitalistas que aplicam parte dos seus vultuosos rendimentos na aquisição de peças raras eleitas pela sua beleza.
O Tabaco – sua aventura pelo mundo
Convirá recordar que o tabaco, conforme todos sabem, é oriundo de uma planta do género “nicotiana”, da família das Solanaceas, cujas folhas sofreram um conveniente tratamento e apropriada secagem. E em aditamento convém lembrar também que o rapé, esse mágico produto cujas inalações fizeram as delícias de nossos bisavós, é muito simplesmente o tabaco moído e reduzido a fino pó.
O termo tabaco parece derivar da palavra “Tobago”, que significa um pequeno pau em forquilha usado como cachimbo pelos aborígenes das Caraíbas. Sabe-se que a planta do tabaco já era fumada, mascada e inalada pelos nativos do Continente americano, muitos séculos antes dos exploradores europeus chegarem ao Novo Mundo.
Conta-nos a história que em 1492, quando o navegador Cristóvão Colombo mandou a terra alguns dos seus marinheiros, estes, aos regressarem a bordo disseram terem visto indígenas dos dois sexos a levarem à boca um pequeno feixe de ervas queimadas, cujo fumo expiravam. É esta, certamente, uma das primeiras referências históricas sobre o tabaco.
No entanto, a partir da Península Ibérica, a sua introdução na Europa só teve lugar em meados do século XVI e, desde logo, muito rapidamente se espalhou por todas as partes do mundo. Os motivos da utilização do tabaco na Europa, de princípio, foram puramente medicinais. A planta do tabaco era então utilizada como remédio, atribuindo-se-lhe a fama de miraculosa panaceia e por isso, designada “Herva Santa”.
Assim, a rainha Catarina de Médicis, deu ordem ao embaixador de França em Lisboa, Sr. Jean Nicot - de onde derivou o nome nicotina. – que lhe remetesse para a corte certas quantidades dessa planta, a fim de aliviar das suas frequentes enxaquecas.
O zeloso embaixador, enviou para o seu país não só a planta milagrosa, em várias barricas, mas também muitas sementes e instruções detalhadas para a sua sementeira e plantação. Estava-se no anos de 1560.
Na Europa de então, a forma como o tabaco era utilizado diferenciava as classes sociais. A gente de bom-tom tomava exclusivamente rapé (daí a existência de tantas caixinhas de rapé preciosíssimas em museus e colecções particulares). Fumar cachimbo, cigarros ou cigarrilhas era plebeu. “Fait peuple” – assim se dizia em França no tempo de Luís XVIII.
Não há dúvidas de que houve desordens e até certos exageros, tendo, um pouco por toda a parte, aparecido editais e proibições, que foram desde a ligeira severidade até ao mais feroz castigo. Na Inglaterra, por exemplo, Henrique VIII mandou chicotear todos os utilizadores de tabaco; a rainha Isabel, sua filha, confiscou todas as caixinhas de rapé; o rei James I proibiu mesmo a cultura do tabaco no seu país. Em certas cidades da Europa por exemplo Amesterdão, foi proibido fumar nas ruas. Em 1661, o sétimo mandamento da Reforma Suiça dizia: ”Não tocarás no tabaco”. Da Santa Sé, o Papa Urbano VIII lançou a excomunhão a todos os utilizadores, tendo em vista o que abusivamente se passava durante as missas, onde os padres as celebravam com as narinas atulhadas de rapé, e os fiéis ao seguirem-lhe o exemplo, perturbavam a serenidade dos ofícios com os seus constantes fungares e as persistentes inalações. Porém, em outros lugares mais distantes do centro europeu, as proibições chegaram mesmo a atingir aspectos desumanos: na Turquia – onde hoje tanto se fuma – os prevaricadores eram “passeados” nas ruas montados em burros, tendo o nariz perfurado e atravessado por uma boquilha de fumar; na Pérsia, cortavam-lhes os lábios; na Rússia deportavam-nos para a Sibéria ou então chicoteavam-nos e cortavam-lhes o nariz ou eram mesmo decapitados, conforme a gravidade dos casos. E tudo isto, afinal era pura perda de tempo... pois as actuais estatísticas bem nos patenteiam que a utilização de tabaco não deixa de progredir entre os homens!
Quanto à introdução do tabaco na China, feita pelos navegadores portugueses durante a segunda metade do século XVI, tudo indica que nessa altura os missionários jesuítas junto da corte do Celeste Império terão desempenhado um papel importante na aceitação e divulgação do rapé no Oriente.
É bem sabido que foram os padres jesuítas que ensinaram os europeus a melhor compreender a China e os chineses e, simultaneamente, a par da sua acção evangelizadora, quem levaram também para Oriente várias ciências como a reforma do calendário, e outros hábitos como o uso do rapé.
Assim consta que o célebre jesuíta Matheo Ricci, quando pela primeira vez foi recebido pelo imperador Wan-li, em 1601, entre os presentes de que fez entrega ao soberano, além de um quadro do Cristo Salvador e de um outro da Santa Virgem Nossa Senhora, contava também uma preciosa caixinha repleta de rapé. Sabe-se que o imperador mandou colocar os divinos quadros num lugar de muita veneração. Todavia, no tocante à preciosa caixinha, aceitou-a polidamente mas, tanto ele como os seus cortesãos, ao fazerem as primeiras tentativas com o rapé, não lhes encontraram qualquer prazer especial, considerando-o até um costume muito primitivo e bárbaro.
Cerca de um século mais tarde, também entre os presentes oferecidos pelos jesuítas ao imperador K’ang-hsi, por ocasião, do seu sexagésimo aniversário (em 1715), figuravam dois recipientes com rapé. Porém, o insucesso repetiu-se. Por sua vez ainda, em 1725, foi mandada pelo nosso rei D. João V uma embaixada à China, chefiada por Alexandre Metello de Sousa e Menezes, em retribuição do valioso presente que o imperador K’ang-hsi nos havia endereçado pelo jesuíta padre António de Magalhães.
Foi com particular emoção que, certo dia, encontrámos a “memória das ofertas que el-rei nosso senhor mandou ao imperador da China” e que aí verificamos existir, entre outras variadíssimas preciosidades, “duas frasqueiras forradas, cada uma com frascos cristalinos lavrados, com bocais de prata e cheios de tabaco de amostrinha”.
O imperador Ch’ien-lung (1736-1795), que sofria de sinusite e fortes enxaquecas, verificou com grande satisfação que o rapé lhe aliviava os seus males físicos ao mesmo tempo que lhe estimulava as ideias, passando a tomá-lo com regular frequência, pelo que foi imitado pelos seus inúmeros cortesãos. Foi assim lançada uma nova moda, apenas permitida às classes mais favorecidas.
Só bastante mais tarde o comércio e o uso do rapé se popularizou, sendo aquele particularmente levado a cabo pelos chineses convertidos ao catolicismo. Atribuía-se então ao rapé as mais variadas virtudes medicinais: a de combater as constipações, fazer transpirar, curar doenças dos olhos, tirar dores de dentes e garganta, tratar da asma e das diarreias, enfim, um bálsamo tão milagroso que até ajudava a acelerar as digestões quando estas se apresentavam mais pesadas e difíceis.
Não admira que, em face de tamanha maravilha, por volta dos finais do século XIX e, quando já estava prestes a terminar a dinastia Ch’ing, todo o povo chinês, sem distinção de classes, sexo ou idade, se entregasse ao uso do rapé como um pequeno vício salutar. Porém, isto só se verificou nos últimos decénios do século XIX, pois durante a maior parte do tempo em que o rapé foi tomado na China, tal privilégio constituiu sagrado exclusivo das classes mais elevadas. E no seio destas, o referido hábito foi tão frequente que o tradicional frasco de rapé passou a ser um complemento indispensável na elegante “toilette” de todo o personagem distinto da sociedade chinesa e um verdadeiro símbolo do seu próprio “status”.
O motivo porque os chineses preferiam usar frascos para o transporte e guarda rapé, enquanto na Europa os seus inúmeros adeptos continuaram sempre a transportá-lo em caixinhas de pequenas faixas rectangulares, deve-se ao facto das “caixinhas” europeias se adaptarem mal aos costumes do Extremo-Oriente. Na verdade, a cabaia chinesa só dispõe de bolsos muito largos por debaixo das suas grandes mangas. Ora a caixinha do tipo europeu, perdida naqueles avantajados espaços, facilmente se abria e espalhava o rapé, manchando assim os preciosos tecidos.
Por outro lado, também havia o problema das unhas pois naquela época na China era chique para quem pertencia às classes superiores usar unhas desmedidamente compridas, as quais, para não se partirem, chegavam mesmo a ser defendidas por especiais protecções feitas em ouro. Tais unhas, orgulhosamente compridas, indicavam o valor do seu rico proprietário.
Este estranho hábito impedia os chineses de utilizar o rapé à maneira europeia, abrindo uma simples caixinha para apanhar uma pitada de pó entre o polegar e o indicador.
Assim a dar crédito às várias fontes, o imperador Ch’ien-lung (1736-1795) – o tal que fungava o rapé para curar a sinusite – de uma só assentada conseguiu resolver os dois problemas. Não só teve a ideia de guardar o seu rapé em pequenos frascos estanques, semelhantes aos que já usava para transportar unguentos medicinais e colírios, mas também a fim de poder apanhar uma pitada de rapé e levá-la até junto das narinas, resolveu fixar à tampa do frasco uma pequena colher, ultrapassando deste modo a delicada dificuldade levantada pelo comprimento das unhas.
A ideia imperial conheceu assim um enorme êxito e os artífices da corte logo começaram a fabricar, a aperfeiçoar e a alindar os frasquinhos para o transporte do rapé. O próprio imperador, orgulhoso da sua seu invenção, não tardou a fazer a sua própria colecção, constituída por muitas centenas de peças, no que não deixou de ser seguido por vários cortesãos.
Assim começou a ser moda entre gente das classes sociais elevadas, obsequiarem-se com um pouco de rapé contido num frasco de alto valor. Para certas ocasiões também um belo frasquinho de rapé se tornou a gratificação ideal destinada a ministros, funcionários e cortesãos influentes.
Ainda não foram referidos alguns frascos mais valiosos e que tem o seu interior decorado com lindas paisagens e poemas. Geralmente, estes frascos são feitos de vidro ou de cristal de rocha, delicadamente esculpidos e vazados até ficarem muito delgados e transparentes. Depois, através da ínfima abertura no gargalo, o engenhoso artista, servindo-se de uma lasca de bambú que funciona como um minúsculo pincel, consegue a raríssima e difícil arte de pintar o interior, com a ajuda de potente iluminação e de fortes lentes amplificadoras. Um trabalho para a ... “paciência de chinês”.
Quase tão importante como o frasco é, também, a qualidade da sua tampa. O formato, a cor do material desta devem integrar-se a harmonizar o conjunto, valorizando-o. Maravilhosas combinações podem ser feitas, tais como um frasco de turmalina rosa brilhante com uma tampa em jade verde-celadon, ou um frasco de ágata raiada com tampa de vetusto coral. A gama de belas combinações é praticamente infindável.
Tampas antigas e de boa qualidade também são hoje muito difíceis de encontrar no mercado.
Nos meados dos Anos 40, pensa-se que no mercado internacional, a par daqueles milhões atrás referidos, haveria apenas algumas dezenas de milhares de exemplares “falsos” (ou melhor dito, recentes). Com o simples decorrer do séc. XX e em face do crescente interesse mundial por estas obras-de-arte, sem dúvida que o número actual de exemplares “falsos” (alguns de manufactura esmeradíssima), ultrapassa em muito a quantidade existente dos antigos, hoje cada vez mais resguardados em museus e colecções particulares, tornando-se assim mais pobre e heterogéneo o material disponível no mercado.
No presente quem quiser adquirir uma peça de grande qualidade, dificilmente terá a sorte de a encontrar disseminada pelas bancadas dos vendedores anónimos. Terá sim, toda a facilidade e garantia de poder realizar uma boa escolha, a um preço também correspondente, na loja aprimorada de um reputado antiquário.
Curioso será ainda de notar quem por razões óbvias, a percentagem de “falsos” existentes nos mercados do Oriente, como Hong-Kong ou Bangkok, é muitíssimo superior à que ainda hoje se encontra nos mercados da Europa, como Londres, Paris ou Amesterdão.
Rodeie-se, pois, de todas as cautelas quem adquirir uma peça de elevado custo. No entanto, se os nossos leitores desejarem tornar-se colecionadores destas pequenas maravilhas – e ainda está muito a tempo de poder ser! – comece por comprar alguns exemplares de mais baixo custo. Adquira sobretudo aqueles de que mais goste. E muito especialmente procure aprender algo junto de conhecedores, com a ajuda da bibliografia especializada.
Realmente, colecionar os maravilhosos e fascinantes frasquinhos de rapé é “como estar preso a um amor eterno e fatal”. É, na verdade, uma euforia e um deleite. Em suma, um fascínio do Oriente.
Marionela Gusmão
Fotos: José Luís Teixeira