
Portugal lê cada vez menos?
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Recentemente um inquérito realizado pela Fundação Calouste Gulbenkian e pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa deu-nos a conhecer uma realidade que se suspeitava, mas que, traduzida em números, assume uma dimensão mais concreta. Em 2021 61% dos portugueses não leram um único livro. De 2022 ainda não há dados, mas suspeita-se um cenário idêntico ou pior.
A revelação não surpreende antes vem confirmar o que vários sinais nos têm vindo a revelar. Se não, vejamos: as livrarias andam quase vazias, as bibliotecas são lugares quase de ficção salvo as excepções que ainda são procuradas por estudantes do ensino superior. Nos momentos festivos não se prioriza a compra de livros para a troca de prendas de aniversário ou de Natal e nas escolas os livros recomendados no Plano Nacional de Leitura se não se encontram na biblioteca da escola também não se compram e ficam por ler. Apesar de Portugal não ser caso único na identificação de não leitores, o estudo também nos mostra que na nossa vizinha Espanha 38 em cada 100 espanhóis não leu um único livro no mesmo período de tempo enquanto que em França foram apenas 8 em cada 100 indivíduos a conseguir tal proeza. Talvez sejam os ares da maresia a distanciar-nos do aroma do papel impresso ou talvez sejamos um país de gente que se basta olhando o oceano e saboreando de olhos fechados o belo sol que poucas vezes nos falta. Ou então somos apenas um povo onde impera o desinteresse pelo conhecimento, a apatia da leitura, o hábito de ver só “ as gordas”, a impaciência que impede a degustação de um boa obra. E sublinha-se o adjectivo porque entre os que leram alguma coisa incluem-se muitos leitores que se dedicaram a péssimos livros, alguns meras repetições de si próprios num mantra infindável de receita esgotada.
Os dados valem pelo que revelam, mas também pelo que provocam. Os números divulgados devem-nos impulsionar ao entendimento de uma realidade que está longe de ser um episódio isolado porque segue uma triste linha de continuidade. E diagnosticar serve para perceber como combater a situação. Não podemos esquecer o contexto de crise económica que uma demasiado elevada percentagem da população vive, mas será mesmo os parcos rendimentos face aos preços dos livros a razão mais forte para a falta de leitura?
Há muitos anos, décadas já, havia um programa com um dos maiores escritores portugueses. Vitorino Nemésio apresentava o “Se bem me lembro…” um programa que respirava a lentidão de um pensamento apurado, de uma narrativa cuidada que desfiava memórias em articulação com um conhecimento da História, da cultura e dos protagonistas. Nemésio prendia-nos ao pequeno écran e enriquecia-nos com a sua vasta cultura e incrível memória. O tempo das conversas de Nemésio cumpria um ritmo que hoje dificilmente seria possível ver na televisão pública ou privada onde uma plêiade de comentadores a granel debitam velozmente opiniões demasiadas vezes inquinadas por interesses manipuláveis. Nemésio era um poeta, romancista e pensador que trazia pela oralidade a nobreza de um discurso extraordinariamente rico.
Hoje, os diversos canais de televisão rivalizam entre si pelo programa de entretenimento mais estupidificante que possam apresentar e esse facto é condenável porque os media não podem descartar a sua responsabilidade no débito cultural de uma sociedade. Por isso, o desinteresse pela leitura traduz um problema mais vasto que a questão financeira, apesar desta também ser uma realidade. Diz muito acerca do desprezo que cada vez mais se sente pelo conhecimento e enriquecimento pessoal. Houve um tempo em que a ignorância envergonhava agora é a demonstração de uma razoável cultura geral e a apresentação de um discurso bem elaborado que parece ser mal encarado.
Mas se os media têm uma cota parte substancial de responsabilidade na perda de hábitos de leitura e no desinteresse cultural, é no seio das famílias que outra forte responsabilidade deve ser encontrada. Quantas crianças desde as mais pequenas, ainda de colo, até à adolescência vemos de tablets e telemóveis nas mãos como estratégia para se manterem calados? Quantos livros são lidos em família? Quantas visitas feitas a uma livraria? Quantos livros manuseados enchem as prateiras das casas? Quantas histórias são lidas na beira da cama?
Manuel Alberto Valente, no Expresso de 30/12/2022, aborda as más decisões editoriais que são a outra face do mesmo problema. Já o dissemos e repetimos: dos 39% portugueses que leram pelo menos um livro durante o ano de 2021, há muitos que leram maus livros. Maus livros, repetimos sem receio da qualificação porque hoje publica-se, muitas vezes, o nome de quem escreve independentemente do que escreve. Não é a obra, a sua qualidade e interesse que serve de critério editorial, mas o nome mediático que se sobrepõe a tudo. E ainda há os que fazem da sua exposição privilegiada num qualquer canal de televisão o palco propagandístico da sua miserável publicação.
À Escola compete também um papel importante, como é óbvio, nomeadamente na educação para uma melhor capacidade de avaliação das obras e espírito crítico. Mas as políticas em curso que sob o disfarce de uma suposta inclusão e estratégias de superação mais não fazem do que desvirtuar o conhecimento e a exigência, muito têm contribuído para cultivar a preguiça que é inimiga da leitura atenta e construtora de pensamento.
Ana Paula Timóteo