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Educação I Estamos a criar inaptos?

Já em modo de férias este é sempre um tempo ideal não só para repor energias, mas para parar e observar. E observar em família significa realizar um balanço sobre o ano de trabalho, reflectir sobre erros cometidos, sonhos adiados e outros atingidos, analisar fragilidades e pensar como as anular. No artigo anterior abordámos a questão da importância de educar para a destreza e desembaraço físico, o saber de forma autónoma resolver situações concretas e de que forma podemos fortalecer debilidades. Hoje regressamos ao tema agora numa outra vertente porque tão importante como os aspectos físicos, mais visíveis e imediatos, são os não visíveis aqueles que forjam o caracter, tecem a narrativa do que somos e nos preparam intelectual e emocionalmente para gerir contrariedades, resistir à preguiça, ultrapassar estados de humor. E estas conquistas alcançam-se num processo de desenvolvimento da autonomia intelectual a que não é alheio o reforço de competências por vezes desprezadas como a concentração e a memória, esta última tantas vezes diabolizada no rasto de equívocos pedagógicos com efeitos desastrosos. E é terrível quando a ignorância se associa à precipitação e à estupidez porque ficamos perante um resultado detonador de uma correcta educação. 

A autonomia vai, obviamente, muito além da questão comportamental e tem a ver com a construção do conhecimento com responsabilidade. Porém, o conhecimento só o é, na verdade, quando se revela em acção independente e por isso a Escola e a família devem ter como uma meta essencial a atingir, não apenas o dotar a criança e o jovem de informação suficiente que lhe forneça conhecimento, mas igualmente o desenvolvimento da capacidade de o transpor para a prática. 

Educar não pode ser um verbo destituído da ideia de que o processo educativo deve ser um caminho para o desenvolvimento integral do indivíduo e este só se alcança quando conquistada a auto-suficiência. Nesta óptica, deve ser motivo de alerta a forma como actualmente um número assustador de jovens se mantém num estado de dependência funcional. Nem sempre as famílias se apercebem, mas as escolas são os lugares onde esta realidade se revela. Há uma constrangedora inaptidão e indolência em demasiadas situações que não se limitam apenas aos aspectos de habilidade física, mas alarga-se ao espectro do funcional básico. Um pouco por todas as salas de aula deste país de águas mornas, os professores testemunham uma preocupante dificuldade, por parte dos seus alunos, em executar simples acções que deviam ser consideradas óbvias, mas incredulamente necessitam de indicações, ordens precisas e instruções detalhadas. As situações triviais para as quais os alunos não apresentam iniciativa são diversas e vão desde o retirar o material escolar da mochila, abrir o manual, folheá-lo, encontrar nele a informação pedida, abrir o caderno para responder, usar as páginas do caderno de forma ordenada, olhar para a tela onde se projectam recursos digitais exemplificativos e esclarecedores de conteúdos, até ao escrever, sem necessitar de alerta, o nome e apelido na folha de teste. Tudo precisa cada vez mais de ser orientado, dirigido, apontado, demonstrado, dito e repetido à exaustão. Antes dos testes os alunos pedem que lhes seja dito com exactidão “as páginas do manual que devem ser estudadas” e são os próprios pais que os incentivam nesse propósito ávidos de “estudar com os filhos” o que representa uma asneira colossal e mais um passo no crescimento da dependência intelectual dos filhos. Pais e filhos não compreendem que o acto de procurar os conteúdos e identificá-los faz parte do estudo e do processo de aprendizagem e crescimento em autonomia exactamente porque é na procura que se identificam saberes e se detectam dúvidas. Assustadoramente tudo parece necessitar de uma mão adulta a indicar e a apontar o caminho. Bom… tudo menos o teclar jogos e conversações no messenger, no instagram, no whatsapp no tik tok. 

A cada vez mais frágil independência funcional vai minando seriamente as aprendizagens a todos os níveis. Se um aluno necessita permanentemente de alguém que o guie para “dar de caras” com a resolução de um problema (por vezes nem assim o conseguem), muito dificilmente ele terá a capacidade de sozinho encontrar soluções independentemente do grau de complexidade do desafio que esteja a enfrentar. Não ultrapassando obstáculos não se chega à meta, não se adquire verdadeiramente o conhecimento, não se transpõem etapas, não se ficam a conhecer os nossos horizontes. 

Curiosamente é vulgar assistir-se a um discurso que procura desvalorizar os maus resultados escolares que espelham a ausência de saberes, esgrimindo o argumento das competências tecnológicas que desde muito cedo as crianças adquirem. Inevitavelmente instala-se a dúvida: se o ganho de saberes justifica a perda de outras capacidades e conhecimentos, estará a humanidade a evoluir, ou está a estagnar ou mesmo a retroceder? Dominar o funcionamento de redes digitais ou manobrar os comandos de um jogo virtual não pode ser mais importante do que cultivar o gosto estético, diversificar conhecimento, desenvolver destrezas. Ser ágil a teclar não se assemelha a conquistar agilidade física, conhecer a natureza, entender a fala dos animais, interpretar as nuvens e os rios, observar as estrelas, decifrar o vento, compreender os conceitos que sustentam a humanidade. Da mesma forma, ficar a conhecer os pequenos segredos da vida de alguém, abrindo janelas indiscretas pelas redes sociais deste mundo, não é definitivamente o mesmo que saber o passado histórico, estar atento ao presente, sentir as feridas do outro, carregar o fardo dos que sofrem, valorizar os pormenores de cada lugar, de cada ausência, escutar e ver, construir pensamento próprio e criativo. Por isso, repetimos: as competências conquistadas que dotam os jovens de habilidades digitais não devem e não podem substituir as restantes sob pena de estarmos a caminhar para o definhamento das capacidades intelectuais mais nobres.

Quando se assiste à romaria dos pais a carregar as mochilas dos filhos na chegada à escola, mochilas pesadas não tanto pelo que é essencial mas por um somatório de recursos desnecessários que os filhos insistem em possuir, quando sabemos das pressões e regateios de notas atribuídas aos filhos, das múltiplas estratégias encetadas pelos pais para conseguirem as milagrosas adaptações que os decretos da “escola Inclusiva” preveem e que mais não são do que passaportes de transições de ano, percebemos o quanto não é promovida e valorizada a autonomia, bem como a responsabilização das crianças e jovens que perdem irreversivelmente a possibilidade de, na idade de ouro, desenvolverem capacidades essenciais. 

Talvez valesse a pena pararmos todos um pouco e pensar no que andamos a fazer com os nossos jovens. E esse passo significa questionarmos que futuro estamos a construir. Estaremos a formar gerações de gente que apenas funciona com instruções e em “piloto automático”? 

É forçoso que em família se reequacione práticas e rotinas. Atribuir responsabilidades dentro da agenda das tarefas familiares diárias e semanais, como ir às compras sem os pais e com lista de compras memorizada, aprender a cozinhar, participar na limpeza da casa, visitar os avós, criar programas de férias e sugestões de fins de semana, são apenas alguns exemplos. Na relação com a escola é essencial não fazer pelo filho o que só a este compete fazer (o que não invalida uma supervisão) como arrumar a mochila para o dia seguinte ou realizar os trabalhos de casa sem ajudas.

Relativamente à Escola, sem dúvida que o modelo educativo tem que ser pensado com lucidez e honestidade para poder ser repensado. Actualmente o que temos é a automatização das aprendizagens mascarada de adaptações selectivas, adicionais, universais e tudo o mais que a panóplia de cosmética política apresenta com vista a falsear a verdadeira realidade escolar. Há países onde se ensina a fazer ciência, mas no nosso, como em tantos outros de similar pobreza, ensina-se apenas a usá-la. E fazer ciência é produzir conhecimento conquistando a independência. Existem questões estruturais e transversais na sociedade que exigem resolução para que a Escola possa com tranquilidade exercer a sua função e tudo começa por um projecto político de país. Sabendo que povo desejamos ser, decidiremos então que Educação precisamos ter. 

 

Paula Timóteo

O pensamento criativo
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