
Educação I Contas-me uma história?




“Contas-me uma história?” pede o filho na hora de dormir e a mãe, ou o pai, trôpegos de cansaço, olhos a teimarem encerrar o dia, a voz num fio, lá se sentam na beira da cama prontos a esquecer o mundo para se abandonarem ao momento mais precioso do dia sabendo bem que estão a construir memórias de açúcar e mel.
O tempo da história é o mais perfeito do dia, a hora em que a magia acontece, pais e filhos na garupa do vento e das nuvens, tecelões de castelos e domadores de dragões, parceiros na coragem e na gargalhada. Por isso, os pais dão um encontrão ao cansaço e deliciados escolhem um livro ou pegam naquele que o filho lhes estende. Mas há alturas em que o pedido é “conta-me uma história das tuas” e aí o desafio é diferente e o orgulho da preferência pelas aventuras imaginativas dos pais leva-os a explorar novos caminhos e a moldar personagens com os olhos dos filhos agarrados às palavras, sons e gestos que vão dançando pelo quarto.
A hora do conto no momento de adormecer, povoando sonhos e imaginação, continua a ser uma rotina em muitas famílias. Infelizmente, durante o dia torna-se quase impossível reservar momentos especiais de história contada. Ouvir o embalo de uma voz que nos transporta a outros universos acalma no momento de adormecer, mas as palavras, os sons, os episódios, as emoções, também despoletam empolgação, vontade de entrar nas histórias, dar a mão às personagens, vencer montanhas e gigantes, saltar rios e fazer fios de espuma com as nuvens e por isso ouvir uma história devia também ser uma rotina diurna para que as crianças possam dar continuidade à imaginação que deve ser estimulada pela história.
Nos infantários há a preocupação de se dedicar algum tempo à leitura em voz alta de uma história, mas ler para um grupo grande e heterogéneo obriga a um trabalho prévio de preparação e nem sempre se toma consciência dessa necessidade. Os Educadores e professores do ensino básico não têm tido acesso a formação especializada com experiências partilhadas neste campo. Contar uma história, sobretudo para um grupo, exige um treino e conhecimento de representação que não pode apenas ser intuitivo. Requer estratégias que evitem erros que acabam por afastar o interesse de quem ouve.
A história contada em casa, por seu turno, também tem sofrido um decréscimo de protagonismo. Se ainda há quem não abdique do momento do conto, muitas são as casas onde se começa a abrir mão do ritual da beira da cama porque o tempo é voraz e a exaustão vence vontades. Os pais moram cada vez mais longe dos locais de trabalho, os trajectos obrigatórios nas rotinas diárias fazem-se muitas vezes recheados de impropérios aos outros condutores, de repetidas recomendações aos filhos, de angústias a trucidar o pensamento. Reféns da inclemência das horas que se esgotam nas filas de trânsito, num autocarro a rebentar de gente ou com dentes cerrados ao volante de um carro que consome gasolina ao preço do ouro, a vida dos jovens pais de hoje é, na maioria dos casos, uma vida de rotina massacrante. Na hora de deitar os filhos ainda sobram as máquinas de roupa a fazer, a louça para lavar e os lanches do dia seguinte para preparar e por isso não restam sequer minutos para a hora da história que começa a ser substituída pela permissão por mais tempo de televisão ou de acesso à net. Houve uma altura em que a televisão pública oferecia oportunidades com qualidade dedicadas aos mais novos com histórias contadas e desenhos animados que ficavam na memória. Sabemos bem que há muito tempo que as opções televisivas se têm pautado por formatos de vergonhosa qualidade e portanto, se a televisão nunca foi uma boa substituta do que só a família pode representar, hoje esse facto é ainda mais acentuado.
Por isso, podemos dizer com total certeza que fazem falta mais contadores de Histórias. Dos que enfeitiçam quem os ouve, que vestem a roupa e a pele das personagens, que tomam a sua voz, os suspiros, os silêncios. Os avós, num tempo distante, costumavam fazer parte do núcleo familiar coabitando com filhos e netos e cumpriam muitas vezes essa função e nem precisavam de esperar pela hora de dormir. Qualquer momento do dia era um bom pretexto para se sentarem com os netos perto e desfiar as histórias com a calma e tranquilidade de quem se tornou dono do tempo. Pela voz dos avós aprendia-se a ler o céu, a ouvir a água, a conhecer as árvores. Mas os avós foram para lares e os pais sucumbem ao cansaço, confiantes no papel desempenhado pelos infantários e escolas, e as crianças acabam por não vivenciar plenamente a experiência de mergulhar numa história como quem mergulha numa onda do mar.
Um contador de histórias é sem dúvida muito mais do que alguém que lê em voz alta uma história cumprindo com rigor a fidelidade ortográfica e de pontuação. Ler ou narrar de cor ou de improviso em voz alta, pressupõe a prévia compreensão profunda com o texto. No caso de uma história há que se apropriar do metabolismo emocional das personagens e alcançar os significados menos expostos da narrativa.
Um contador de histórias calça os sapatos dos protagonistas, e trilha os caminhos, medos e loucuras, paixões e desilusões dos que tomaram voz pela sua voz e pega na mão de cada um dos que o ouvem e leva-o consigo.
É fácil perceber por que razão fazem falta os contadores de histórias. Eles potenciam experiências emotivas, alimentam a imaginação, constroem mundos na invisibilidade do pensamento individual tanto para quem conta como para quem ouve. Independentemente da idade há em cada história a possibilidade do deslumbramento.
Peter Pan é o paradigma da eterna criança que para sempre existirá em nós se formos capazes de nos transportar para o corpo das personagens e pisar os cenários e os lugares onde tudo se passa. Quantos de nós guarda a memória de um livro lido pela avó, pela mãe, pelo pai? Nós ávidos de ouvir, o nosso narrador de livro aberto, ou sem livro que os avós e pais sempre foram bons a inventar enredos.
Mas lamentavelmente os livros escasseiam cada vez mais na agenda dos quotidianos.
Há uma dimensão dos afectos partilhados na hora do conto que se traduz em vantagens cognitivas intraduzíveis em grelhas de exel proporcionadas aos jovens ouvintes.
Por isso é fundamental que a família recupere tempo de qualidade, que entenda que a televisão e os tablets jamais poderão tomar o lugar de uma boa história e que nas escolas se perceba a relevância de boas leituras.
Agora que muitos se encontram de férias, não será uma óptima oportunidade para uma boa história?
Paula Timóteo