
Educação I A validação da ignorância

2022 arranca nas vésperas de mais uma campanha eleitoral que culminará nas legislativas do dia 30. Muitos são os problemas e preocupações que assolam o país, mas entre eles, há um que, estranhamente, entra em escala reduzida nos debates ou nem sequer entra: A Educação!
Saber o que os vários quadrantes partidários pensam sobre a Escola actual e que Projecto Educativo ambicionam para o país, seria desejável e exigível. Porém, nos próximos tempos, à semelhança do que tem vindo a acontecer, ouvir-se-á falar muito da TAP, do combate à Covid 19, das suas medidas incoerentes, do excesso de algumas e da falta de outras. Iremos ouvir falar da economia, das ordens de Bruxelas e do BCE, alguma coisa acerca do SNS, e novamente a TAP e muito, mesmo muito sobre a Covid 19 e as suas variantes com as respectivas vagas como se de marés fossem, e das vacinas e reforços, dos testes e falta deles, dos mortos e infectados, dos internados sem gravidade e com gravidade, esquecendo todos os outros que se somam em patologias que parece terem desaparecido num desprezo aviltante.
Covid 19 será servido em doses duplas e generosas porque é um assunto que rende, e muito. Mas sobre a Educação, um parágrafo e alguns minutos de antena será talvez demasiado porque a Educação não mobiliza, não gere lucro, não é vendável, não faz subir as audiências dos canais, nem faz manchetes .
Na verdade, desce sobre o lodaçal da Escola Pública, um manto de desprezo infame, de silenciamento criminoso, de acatamento servil. O grande drama desta história é que as consequências não se medem facilmente em gráficos cheios de cores revelando matrizes de risco, proporção de positividade, incidência cumulativa. As consequências de uma Escola má não deixam de ser pandémicos, mas não colocam pessoas nas camas de hospital, não enchem as urgências, não vendem máscaras, nem enriquecem a indústria farmacêutica. A pandemia é de outra natureza, mais subtil e lenta apesar de letal. Porque existe muita forma de matar. A carga viral da ignorância, cresce na proporcionalidade directa do desinvestimento na Educação e no seu desvirtuamento e ela mata, lenta, mas inexoravelmente as competências cognitivas, a criatividade, a curiosidade, a coragem e a reflexão crítica. No final não restará nada mais e talvez regressemos, num futuro de tempo incerto, à era do Homo Habilis ou nem isso…
Uma das tragédias da Escola Pública de hoje é a sua sujeição a orientações bizarras que a transforma num emaranhado vicioso de procedimentos altamente regulados, dirigistas e impostos que têm como único objectivo a validação do desconhecimento. Os enquadramentos legais que os dec 54/2018 e 55/2018 introduziram, dão um recado claríssimo aos professores: se em cada disciplina não houver sucesso estampado nas pautas de resultados finais de período, a responsabilidade é exclusivamente do professor porque a este compete fazer tudo, absolutamente tudo, mesmo o que objectiva e humanamente é impossível de concretizar, para que os resultados sejam risonhos. Desta forma, se o aluno não sabe escrever, ou seja, comete erros gramaticais e de pontuação frequentes, apresenta caligrafia irreconhecível ou escreve frases sem sentido, acciona-se a sinalização para os serviços de Educação Especial e, em regra, ficará diagnosticado com uma disgrafia e/ou disortografia que o isentará de qualquer penalização no seu processo escolar enquanto obriga os professores a ignorar erros, a decifrar o ilegível e a optar por testes com cruzes e testes de recuperação sucessivamente mais básicos e acessíveis até ser alcançado o tão famigerado “sucesso”.
A narrativa escrita, componente essencial do conhecimento e do desenvolvimento intelectual, é relegada para o fundo da gaveta. Um fundo, muito, muito fundo e recôndito. E o mesmo se passa na Matemática com o diagnóstico de discalculia. Atenção que todos estes “dis” surgem depois de descartadas eventuais causas do foro neurológico.
Os resultados dos testes são desfavoráveis? Os alunos são indisciplinados, não cumprem tarefas, não entendem o óbvio, não agem de forma autónoma, não interpretam o básico, não executam simples tarefas sem que lhes peguem na mão e escrevam por eles? A responsabilidade é exclusivamente do professor. Clarifiquemos: o professor é o profissional a quem compete a elaboração e aplicação pedagógica de materiais, recursos e estratégias, de as adaptar aos contextos diversos em que são aplicadas. A ele compete ensinar e desenvolver competências, ser minimamente criativo nas abordagens e saber comunicar, mas o processo de ensino/aprendizagem não é de sentido único nem um monólogo. É um caminho dinâmico de duas vias e no qual o aluno tem que se envolver com responsabilidade. E tudo depende deste entendimento.
Criar mecanismos e diplomas legais que garantam estatísticas de um sucesso a todo o custo, é comprometer seriamente o futuro. Pode resultar em ganhos políticos a curto e médio prazo e ter um efeito de embelezamento cosmético simpático e luminoso, mas a longo prazo terá repercussões estruturantes graves.
É por isso urgente a honestidade na politica educativa e a sua alforria relativamente aos ditames do Ministério das Finanças e agendas partidárias. O que é verdadeiramente premente é perceber a realidade vivida nas escolas, as dificuldades de aprendizagem que os números redondos escondem, ouvir os professores, acabar com a parafernália insana de grelhas e documentos que nada significam e nenhum benefício trazem ao ensino, reestruturar o currículo valorizando áreas sistematicamente desconsideradas, redimensionar as turmas, limitar o número de alunos por professor, responsabilizar as famílias pelos comportamentos desviantes dos filhos e explicar-lhes qual o seu verdadeiro papel. O que seria sensato era um acordo entre todas as forças partidárias na construção das traves mestras da Educação Pública concebendo uma política de educação pensada a longo prazo e que envolva critérios rigorosos na escolha dos titulares da respectiva pasta.
A Escola Pública não pode transformar-se numa Escolinha “assim-assim” onde todos têm garantido o salvo conduto da transição e para onde vão os que não têm dinheiro para escolher Escolas eticamente exigentes. A diabolização das retenções a par de um edifício kafkiano de desmobilização da exigência avaliativa e de um Programa Educativo sem visão, está a conduzir a Escola Pública ao descrédito anedótico.
Mas sobre o grande desastre da Escola Pública, poucas vozes se têm levantado e a elas nenhum palco lhes é oferecido. E não será diferente ao longo da campanha eleitoral durante a qual nada de substancialmente significativo ficaremos a saber.
Ana Paula Timóteo