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Educação I  A musculatura emocional e a perda de competências

Um rapaz a tocar um telemóvel

Em cada ano lectivo que começa, são detectados nos alunos novas perdas de competências, funcionais, emocionais e académicas. E é inevitável o pensamento que se avoluma de que o ensino em Portugal se tem tornado numa anedota de mau gosto e péssima qualidade. Mas não é apenas o ensino nas escolas que está em processo de falência. No processo educativo familiar tem imperado um laxismo absolutamente irresponsável, um desnorte e uma demissão educativa que já nem se disfarça com teorias mal engendradas. Nos cafés, restaurantes e dentro dos carros o que mais se vê são crianças de pouca idade, quase bebés ainda e outras mais velhinhas de telemóvel ou tablet nas mãos de olhos fixos nos écrans cheios de bonecada no movimento feroz de jogos que os mantém despertos. Atentos, mas com a concentração conectada a estímulos electrónicos. Em sentido lamentavelmente oposto são poucas as crianças que correm e brincam nos parques em brincadeiras promotoras de motricidade, autonomia e convívio. 

Em simultâneo, adoptou-se um paradigma de educação parental que se sustenta na ideia de manter as crianças a salvo das contrariedades, das dificuldades físicas e do confronto com as derrotas, estejam estas ligadas ao resultado de um jogo, de uma exigência não atendida ou da impossibilidade de se cumprir uma ida ao cinema prometida. A escassez de oportunidades de fortalecimento físico e mental produz os seus efeitos na vida escolar, nos relacionamentos interpessoais e mais tarde na vida profissional.

Não é por isso estranho que, na escola, quando chamados à atenção em tom e registo adequados os alunos amuem com facilidade, optem pelo pacto do silêncio quando chamados a participar no processo de autorresponsabilização ou pela argumentação inusitada havendo ainda quem prefira o choro fácil e injustificado. E é constrangedoramente comum o envio de missivas agressivas por parte da família que se sustenta numa crença: a de que a escola e os professores em particular são inimigos dos seus filhos. 

No mês passado falou-se aqui dos pequenos grandes ditadores a propósito de um episódio testemunhado num final de dia de praia. De uma forma que não se pretende generalizar, mas que se tem tornado perigosamente dominante no contexto familiar, as regras estão a ser ditadas sobretudo pelas crianças que, desta forma, crescem convictas da não existência de limites, controlos e consequências penalizadoras.

Mas não são apenas competências emocionais que estão a ser desvirtuadas. Recentemente, Joaquim Ruivo, professor de História, escreveu um artigo de opinião para o Jornal de Leiria onde testemunha situações impensáveis que desmascaram níveis de ignorância inadmissíveis no que diz respeito a um trabalho que tem de ser responsabilidade da família. Diz o professor:

“Em cadernetas de turmas do 8º e 9º anos fui chamado a atenção por vários alunos terem preenchido, no lugar do nome dos seus pais, apenas “Carlos”, “Maria”, “António”, “Josélia”, “Sérgio”, tão somente por não saberem o seu apelido. Noutros casos, vários alunos deixaram em branco a profissão dos pais, por a desconhecerem. Um dos alunos na profissão do pai respondeu “patrão”, outro “fabrilista” e o outro “madeirense”… Outros não preencheram a morada porque não sabem bem o nome da rua, nem da terra onde vivem. Um bom número deles não sabe a idade dos irmãos, quer dos mais novos, quer dos mais velhos. Muitos não sabem que classificação tiveram na disciplina no ano anterior e, muito menos, o nome dos professores. A maioria não tem livros em casa, a não ser os escolares. Revistas, tão pouco.” 

 

O cenário descrito pode parecer uma descrição exagerada, caricatural, mas infelizmente corresponde a uma realidade assustadora que tem sido atirada para debaixo do tapete em sucessivas manobras de maquilhagem burocrática.

Conjugado com a ignorância trazida de casa há cada vez mais alunos que transitam de ano e de ciclo sem conhecimentos básicos e isto independentemente do que os registos de secretaria possam mascarar. Chegam ao 2º ciclo sem saber ler nem escrever e transitam para o 3º ciclo na mesma situação. Mais uma vez não há aqui exagero nem uso de metáforas. A legislação em vigor conjugada com interpretações abusivas e um terror absoluto com os recursos às avaliações interpostos pelos pais, o ter de apresentar grelhas e grelhites escrutinadas ao milímetro, relatórios, justificações e evidências de tudo, o terror de não ser reconduzido na escola, no caso dos contratados, de ter um mau horário no próximo ano, no caso dos efectivos, ou simplesmente já não ter energia para tanta luta, conduz, quase inevitavelmente, ao baixar de braços. 

Os professores são náufragos num mar revolto que os engole sem, aparentemente, nenhuma hipótese de salvação.

O problema é global e os pais não têm sido devidamente chamados ao palco da responsabilidade pelo insucesso dos seus educandos. Existem de facto erros de análise e ambiguidades conceptuais que necessitam de urgente clarificação quer ao nível do papel dos educadores familiares quer ao nível do que a escola está a fazer. O insucesso escolar é uma evidência que não deve ser disfarçada sob pena de não se resolver a sua origem e na sua origem está, inevitavelmente e num elevado número de casos, uma base educativa inicial, em contexto familiar, crivada de erros que são perpetuados na escola. E sobre este problema muito há a reflectir e a fazer e nada tem sido feito. Ano após ano há uma frase que cada vez mais se ouve por parte dos pais “não sei o que fazer com o meu filho(a)” e outra por parte dos professores que se cruzam nos espaços informais da escola “os alunos cada vez sabem menos”. Em casa prefere-se realizar as vontades dos pequenos ditadores, evitar-se o “não”, as conversas e actividades edificantes em família. Na escola opta-se pela estratégia da avestruz.

Há uma evidente falta de trabalho ao nível da “musculatura emocional” e do apelo à criatividade que se faz através da gestão dos fracassos, do esforço sério, da luta constante para alargar os limites individuais. E este facto tem o seu preço imediato e a mais longo prazo com a saúde mental das crianças e jovens a deteriorar-se a par de um retrocesso de capacidades. Este é um quadro que deveria mobilizar a sociedade civil e científica pressionando os decisores políticos a olharem menos para o exel e a ouvirem mais quem melhor sabe do assunto.

Paula Timóteo

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