top of page

Educação I Os pequenos grandes ditadores

Comer Cereais

A tarde caminhava para o fim, mas a praia ainda se povoava de gente a aproveitar um sol bom que nunca é uma certeza em praias como esta, em S. Martinho do Porto, a pouco mais de 100 kms a norte de Lisboa. 

A certa altura a calmaria que convidava à leitura ou simplesmente fechar os olhos e aproveitar o resto do dia, foi interrompida e ao som feliz de crianças a brincar, vozes quase em surdina de adultos a conversar e ao sereno mergulhar do mar nas areias finas da praia, juntou-se o choro estridente de uma criança. Era um daqueles prantos que julgamos só possível de acontecer quando há uma queda dolorosa. Mas sabemos que, por norma e se não houver gravidade, normalmente o aconchego dos pais é suficiente para acalmar em segundos ou escassos minutos as dores que muitas vezes são mais emocionais. Mas desta vez, naquela tarde tranquila e saborosa o choro daquela criança não se acalmava. Surgia em vagas sucessivas como explosões que intercalavam com um carpir menos ostensivo. Havia claramente uma raiva que não se desejava contida, não se resignava e que ressurgia como uma labareda de novo atiçada.

Levantei-me para tentar compreender o que se passava. Facilmente percebeu-se de onde provinha o drama: uma menina de uns 3/4 anos agarrada à mãe rogava em prantos que esta lhe pegasse ao colo. A mãe, repetia a exigência de um pedido de desculpa por parte da filha e só depois acedia ao pedido. O pai, ao lado, mantinha-se em silêncio. 

À medida que os minutos passavam a situação foi ficando mais clara. A criança terá sido desobediente e até agressiva com a mãe que se mostrava e bem, inflexível no pedido de desculpa. Mas os minutos alongavam-se e o choro convulsivo e sonoro não mostrava sinais de abrandamento. Vários eram já os olhares dirigidos ao paredão e não havia leitura que resistisse perante o alvoroço criado.

Comecei a pensar que a estratégia dos pais devesse passar por levar a criança pela mão não abdicando do pedido de desculpa, não cedendo, mas garantindo a paz a todos os que ali tinham a ela direito.

Até que ao fim de uns dolorosos 20 minutos a mãe pegou na criança ao colo, cedendo assim à exigência berrada da filha, afiançando-lhe um castigo em casa.

Este episódio fez-me relembrar o que há muito tempo aprendi e sempre recomendo a jovens educadores sejam pais ou professores nunca determinar uma regra, ordem, sanção que não estejamos em condições de cumprir. Garantir uma consequência e esta não acontecer, descredibiliza quem a definiu e alimenta um sentimento de impunidade.

No caso descrito adivinha-se com relativo grau de certeza que aquele tipo de situação não terá sido um evento singular. Aquela criança sabe que consegue vencer os adultos pela exaustão conseguindo conquistar tudo o que quer. Aquela criança sabe que basta manter o registo choroso pelo tempo que entender e conseguirá alcançar os seus objectivos. 

E claramente surge a dúvida: por que razão aqueles pais não sairam da praia com a filha pelo seu pé. Por que razão não conseguiram negar o colo exigido a plenos pulmões? 

O problema maior não está no incidente aqui narrado, mas sim no facto dele se inscrever numa narrativa educacional que há muito se tem afirmado no seio das famílias e que acaba por transitar para dentro das escolas. A incapacidade de produzir consequências efectivas decorrentes de actos realizados. Em lugares públicos onde se assistem a birras descomunais ou a comportamentos ruidosos, excessivos e perfeitamente descontrolados de crianças, é comum ouvir-se do pai ou da mãe um  “olha que…” que soa a aviso tímido, uma espécie de cliché dito sem convicção, uma repetida ameaça que nunca se concretiza. Um “olha que te estou a avisar…” patético e que o único efeito que produz é o de alimentar a descrença na palavra dos pais. 

Quantas vezes já fomos importunados num espaço público com os berros de crianças excitadas em correria desenfreada pelos corredores de supermercado ou de um restaurante? “Não grites…” ouve-se por vezes num apelo suave, débil, sem convicção de pais que até consideram que os seus pimpolhos são os seres mais adoráveis e que o resto do mundo existe para os idolatrar. Estimular o crescimento das crianças não é habituá-las a não reconhecer fronteiras.

As crianças que mandam nos pais e se sentem em casa quando estão num espaço público, são as crianças que, quando chegam à idade escolar, até mesmo no infantário, revelam-se como estando acostumadas a ditarem o ritmo dos acontecimentos, a realizarem apenas o que lhes apetece,  quando e como lhes apetecer. São estas crianças, habituadas a não terem limites (há quem confunda estímulo da criatividade com ausência de regras e limites), que lidam muito mal com a disciplina, essencial a uma convivência em grupo, e com o cumprimento de responsabilidades escolares. A responsabilização nunca lhes tocou, ignoram o que isso seja, sempre foram donas do mundo e pequenos ditadores nas dinâmicas familiares. Crescem na convicção de uma falsa realidade, crentes que o mundo existe para os servir e a tudo condescender. 

É na entrada para a escola, sobretudo a partir do 2º ciclo, que se evidenciam os primeiros problemas, mas também é então que a política de maquilhagem se revela. Uma teia legislativa que permite que os pequenos ditadores continuem o seu percurso a coberto de diplomas legais que empurram para a escola toda a responsabilidade e a obriga a comprometer-se com o impossível. 

Mais tarde, na dade adulta o embate com a vida sem purpurinas nem almofadas de penas pode então ser avassalador e poucos terão capacidade para saber gerir a frustração.

 A sociedade actual está a ameaçar o futuro a coberto de equívocos e erros crassos que se estão a perpetuar em muitas famílias e que a escola, pressionada pela comunidade e poder político, acaba por legitimar e dar continuidade.

Às crianças e jovens  que não entram neste amplo pote de produto de errada educação resta respirar fundo, realizar exercícios de concentração como treino para aguentar aulas repetidamente interrompidas pelos “reizinhos” e tentar não perder o foco nos seus objectivos.

Paula Timóteo

bottom of page