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0 Centenário de Natália Correia

"Eu sou nocturna."

Natália Correia 1927

Natália Correia princípio dos Anos 40

Anos 50 Natália no Templo de Diana em Évora

Fachada principal do Botequim

Botequim, 24 de Abril de 1974.

Natália Correia viveu quase toda a sua vida em Lisboa, cidade angular de toda a sua existência.

Na capital escolheu a sua residência numa zona de confluência de várias camadas sociais. À distância ficava-lhe o Rato (espaço aristocrático), ao cimo o Marquês de Pombal (área burguesa) e, defronte, a Avenida da Liberdade (zona cosmopolita).

Corriam os anos 50, quando a escritora, então em início da sua fulgurante carreira, descobriu, casualmente, um 5o andar na Rua Rodrigues Sampaio. “Um dia vim aqui visitar uns amigos e a atmosfera da casa atraiu-me logo. Eles mudaram-se e este apartamento esteve muito tempo devoluto, como que à espera que eu casasse e o alugasse”.

Situava-se num edifício sólido e elegante, discreto e requintado com, no rés-do-chão, uma das melhores pastelarias-restaurantes da cidade. Natália Correia passou a habitar o último piso após o seu casamento, em 1953, com Alfredo Lage Machado. “Ele foi o grande amor da sua vida”, confidencia-nos Helena Cantos (protagonista feminina do filme Santo Antero),e amiga íntima durante décadas.

Com invulgar bom gosto, a poetisa decorou-o. Na entrada, dispôs sobre numa credência um busto seu da autoria de Martins Correia. No salão principal instalou a biblioteca composta por milhares de volumes, um auto retrato, um óleo de Cesariny, uma escultura de Júlio de Sousa e uma máscara de Eça de Queiroz. Em posição de destaque, uma gigantesca mesa-secretária, estilo império, com tampo de mármore escuro e pés dourados, cadeiras Luís XVI, porcelanas chinesas (herdadas da mãe), peças de artesanato e um tabuleiro de xadrez; numa sala anexa, vários quadros contemporâneos, um canapé, um par de “bergeres” e um bar de estilo renascença.

Henry Miller bate à porta

Durante duas décadas a casa tornou-se um dos mais pujantes salões literários de Lisboa, onde se reuniam, pelas noites fora, escritores, pintores e políticos.

“Natália Correia e o seu marido cederam a sua elegante residência”, descreve um jornal da época, “para a representação da peça de Jean-Paul Sartre, `Huis Clos´, inédita entre nós. Foi interpretada por Natália Correia, Maria Ferreira, Castro Freire e Manuel Lima”.

O espectáculo, encenado por Carlos Wallenstein (açoriano), teve entre a assistência Isabel da Nóbrega, Urbano Tavares Rodrigues, Sophia de Mello Breyner, Francisco Sousa Tavares, João Gaspar Simões, Fernando Amado e Almada Negreiros.

Numa noite, em 1950, Henry Miller bate à porta de Natália que fica espantada. Ele entra, senta-se e discute com os presentes, entre os quais David Mourão Ferreira e Delfim Santos, o tema do amor. Ao sair, o romancista norte-americano exclamará: “Aqui sentimo-nos ou no século XVIII ou no ano 2000. Foi preciso vir a Portugal para encontrar uma verdadeira pitonisa”.

Entre outros vultos universais que a frequentaram, destacam-se Ionesco, Claude Roi e Michaux.

Bar Botequim

A escritora resolve abrir, em 1971, com a escultora Isabel Meyrelles, o Bar Botequim, na zona da Graça. Transfere para aquele local as tertúlias da sua casa, adaptando-o com requinte. As mesas são especialmente encomendas, as cadeiras estofadas a veludo, as paredes revestidas a damasco. O bar tornar-se-à (com piano em fundo) um novo santuário de Natália Correia. Noite após noite, ano após ano, a poetisa ali fará inesquecíveis tertúlias, discussões, conspirações.

Espaço único, marcou a vida política e cultural portuguesa das últimas décadas do século XX.

Casulo de Natália

O quarto da escritora revelava-se um verdadeiro casulo. Nas paredes sobressaíam crucifixos, imagens do Padre Cruz e medalhas de Nossa Senhora de Fátima.

A cama era de bilros com dossel, a secretária um bufete em pau-santo, a abarrotar de manuscritos e livros. Natália Correia passava nele os dias. Acordava ao fim da manhã, tomava uma refeição ligeira na cama, e dedicava o tempo a escrever na secretária.

Ao fim da tarde, pelas sete horas, chegavam as amigas íntimas que recebia enquanto tomava banho. “De seguida escolhia a roupa, ocupando-se o senhor Machado de lhe comprar os batons, as sombras, as meias”, pormenoriza Helena Cantos. “Jantava e, depois, seguia invariavelmente para o Botequim”.


 

Preocupações constantes

Os últimos anos de Natália Correia foram marcados por preocupações constantes. A mãe morre no Brasil e a irmã Carmen desaparece naquele país, onde se radicara, tendo sido possivelmente assassinada; o marido falece, após 39 anos de um casamento harmonioso; as dificuldades económicas espreitam e vários amigos afastam-se.

“Ela poderia ter vendido a sua colecção de pintura ou a biblioteca, mas não era capaz, dadas as recordações que encerravam”, refere Helena Cantos. “Além disso queria legar esse património aos Açores”.

A autora de “Sonetos Românticos”dedica-se, com a incansável ajuda de João Rubus, a reunir os seus manuscritos espalhados pela casa. O trabalho resulta na edição da Poesia Conpleta, a que deu o título de “O Sol nas Noites e Luar nos Dias”. O livro inclui, aliás, uma referência especial a João Rubus “a quem agradeço a devotada colaboração que deu a esta recolha da minha poesia nomeadamente dos inéditos que desencantou na volumosa desarrumação dos desdenhados escritos”. A obra só sairá, no entanto, após o desaparecimento de Natália Correia.


 

Imensidão do mar

“A ilha onde nasci não é para mim uma imagem longínqua. Ela está dentro do meu quotidiano. Pulsa na minha natureza, Na minha acção diária”, escreve. “Acompanha-me a consciência por vezes dolorosa de que estando presa ao continente a minha alma é de imensidão do mar onde nasci”.

Interventiva e activa, Natália integrará, nos últimos tempos, a Frente Nacional para a Defesa da Cultura, e o Primeiro Encontro Luso – Marroquino de Cooperação, organizado por Moisés Espírito Santo, proferindo pelo Pais colóquios, conferências e palestras.

Na noite de 16 de Março de 1993, passa a noite, como de costume, no Botequim. Ao regressar a casa, pelas quatro horas da madrugada, sente-se mal e desaparece de um ataque cardíaco.

O Botequim não resistiu ao desaparecimento da sua fundadora, acabando por fechar, decadente e sem público, em 1995.

Grandes raridades

Após a morte, em 1997, de Dórdio Guimarães (seu último marido) iniciou-se o inventário do recheio da casa. Os livros e manuscritos foram tratados por técnicos da Biblioteca Nacional que descobriram grandes raridades, como edições dos séculos XVI a XIX. Os quadros foram estudados pelo “marchand” Manuel de Brito.

.Entre os bens de Natália Correia, entregues aos Açores e guardados no Museu Carlos Machado e Biblioteca Pública de Ponta Delgada, sobressaem 10 mil livros , 286 pinturas esculturas de autores portugueses , móveis , roupas e objectos pessoais e contas bancárias. O seu acervo literário, contendo diversos manuscritos inéditos encontra-se guardado em 176 caixas na Biblioteca de Ponta Delgada.

Tudo este património destina-se, segundo o testamento, a “criar o Museu Natália Correia”, na Fajã de Baixo, em São Miguel, sua terra natal.

António Brás

 

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